quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Engano

Acordou de um sonho que preferia esquecer; cabelo grudado na cara pelo suor, os barulhos da manhã batendo na janela e querendo entrar. Alice passou o dia todo transtornada por um sonho simples, só que mais vivo do que sua própria vida.
Depois de um tempo ela esquecera, esqueceu a voz, esqueceu os agudos e até a risada. Esqueceu o rosto, a tonalidade dos olhos, esqueceu a cor exata do cabelo dela ao sol. Via seu rosto como via tudo assim que acordava e antes de colocar os óculos. Podia reconhecer, podia sentir falta, mas não sabia mais dos detalhes. Ela não sabia se achava que sentia falta ou se sentia de verdade. Não sabia se sentia falta por não lembrar mais de quase nada ou porque queria lembrar. Mas naquele sonho, tão nítido e real, ela lhe falava de perto, sentiu sua risada como uma onda de calor percorrendo todo o corpo e terminando com um arrepio. Lembrou do rosto, da voz e de uma mania há muito esquecida.
Alice agradeceu baixinho por não ter sentido todo aquele mar de emoções que a tomavam sempre que lembrava daqueles olhos azuis e da franja cortada rente aos olhos. Permitiu rir timidamente ao lembrar do tique dela de arrumar o cabelo para o lado direito. Permitiu rir de todas as coisas e não se sentiu tão triste. Sentiu saudade e não mais tristeza.
Foram dois anos difíceis para ela, mas naquela manhã, ao lembrar de tudo isso, se sentiu diferente de tudo o que havia sido até então. Não era como se tivesse alcançado algum tipo de liberdade. Sabia que a liberdade que queria era pura utopia. Finalmente sentiu como se pudesse viver algo. Estava leve, muito assustada, mas seus pés não pesavam tanto e as dores do passado não iriam mais a acordar de noite. Aquele rosto desfigurado com a voz rouca era agora uma pessoa completa, e ela precisava ser uma também.
Descobriu então que não havia amado. E que não podia continuar a se enganar.

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